Por uma sociologia do Brasil marxista

Na dor histórica da exploração e das dominações, mas também na esperança do enfrentamento, que sirvam estas páginas às pesquisas e ao público leitor interessados no Brasil e inspirados pela luta em favor de sua transformação.

Foto: Victor Barau

Por Alysson Leandro Mascaro

Entrego neste livro minha perspectiva crítica a respeito da sociologia do Brasil, propondo e sistematizando três caminhos dos pensamentos sociais brasileiros.

As interpretações acerca da sociedade brasileira perpassam já séculos e são múltiplas, revelando distintos horizontes e implicações. Ainda há quem exalte o país por conta de sua reputada abençoada natureza; há os que o tomam a partir da pretensa gente cordial, sentimentalista, e outros ainda torcem o conceito, associando cordial a bom; há os que louvam o potencial pátrio a partir da miscigenação; há os críticos ao Estado, ao patrimonialismo e a populismos; e há os que desejam mais Estado e mais decisão política soberana. No entanto, no seio de todos esses conclames históricos e sociais, despontam, ainda, leituras que buscam alcançar sua materialidade, a determinação pelos modos de produção, as específicas explorações, dominações e opressões que articularam as formações sociais que historicamente resultaram no Brasil. Trata-se de um conjunto raro de leituras – as críticas –, relativamente negado ou ocultado pela ambiência intelectual liberal ao longo de muito tempo, mas o mais especial, que aqui trago na esperança de que seja enfim definitivamente alcançado e consolidado por aquelas e aqueles que se ocupam do conhecimento radical a respeito do país.

As lutas de classes e as lutas sociais, as disputas intelectuais e o domínio ideológico são responsáveis pelas modulações de interesses e perspectivas teóricas sobre o Brasil. A partir daí, dois caminhos se abrem. De um lado, naturalizando o capitalismo e tomando-o como base inexorável da ação política, são as leituras liberais que ganham posição social e intelectual dominante no final do século XX e início do século XXI. De outro lado, pontualmente, laivos regressivos, ditatoriais e moralistas sempre retornam – o clamor à família, à tradição, aos costumes e à propriedade defendida de modo iliberal. Contra tudo isso, o terceiro e mais importante caminho, via de regra desconhecido ou deliberadamente denegado pela ambiência acadêmica: o pensamento crítico, que se funda nas dimensões materiais e estruturais da produção e de sua reprodução, é tanto a base científica e o ponto mais alto da compreensão social como, também, o grande horizonte de leitura a ser evitado pela ideologia capitalista. Visões radicalmente críticas acerca da sociedade revelam-se raras; de modo amplo, as universidades, os espaços acadêmicos e os intelectuais reclamam âmbitos temáticos e perspectivas teóricas que nunca ponham em causa o capitalismo nem apontem a luta socialista como possibilidade.

Assim, está sempre em questão até mesmo a noção do que seja a sociologia do Brasil, tomada aqui a partir das questões do chamado pensamento social brasileiro. A tendência liberal da intelectualidade nas sociedades capitalistas torna seu corolário teórico analítico, encerrado mais em estatísticas e empirias fragmentadas das relações e das instituições já dadas que, propriamente, em alcançar suas totalizações e suas causas sociais estruturais. Daí decorre o grande contraste entre esse conjunto ideológico liberal e as leituras marxistas, a ponto de, muitas vezes, mesmo que se reconheçam suas distinções, elas não sejam perfilháveis como sociologias comparáveis. Em tal contexto, é necessário reclamar uma ciência da sociedade capitalista e da formação social brasileira que rompa com os limites temáticos e as abordagens aceitas pelo meio acadêmico e intelectual bem instalado nos aparelhos ideológicos burgueses. É preciso, pois, deslocar e ampliar o que se toma por sociologia do Brasil, alcançando a crítica como sua chave decisiva de leitura.

Também os tempos específicos da dinâmica social, política, econômica e cultural do país tornam a compreensão social brasileira variável de acordo com os afetos prevalecentes. No início do século XXI, o Brasil vislumbrava-se como potência mundial; anos depois, no bicentenário de sua independência política, seu grau de degradação alcançou patamares poucas vezes vistos em sua história. São dois momentos sequenciais, mas de afecções distintas, que levam também a duas atitudes sobre o país: ufanismo de um lado e vergonha de outro. Ocorre que entre as margens liberais-progressistas e reacionárias do capitalismo brasileiro há o mesmo rio: exploração burguesa, golpes, controle político, jurídico, militar e ideológico que impedem variações na dominação de classes e grupos, mantendo a dinâmica histórica voltada à acumulação. Nesse contexto, a explicação social, por mais variável em seus méritos ou em suas sensibilidades, via de regra é sempre um conjunto explicativo moralista, juspositivista, liberal ou, então, culturalista, voluntarista, não juspositivista. Alcançar a materialidade histórica e científica da sociedade é tomar o estrutural e determinante – os modos de produção, as classes, as formas sociais –, de tal modo que então esperanças e dores não sejam acasos dos tempos nem virtudes e fortunas desenraizadas da dinâmica concreta da reprodução social. A crítica é tanto a ciência que se deve descobrir e aprender quanto o passo para a luta de transformação.

Este livro, organizando as linhas de compreensão teóricas sobre a sociedade brasileira, busca romper com suas típicas limitações, liberais ou organicistas, inscrevendo então nesse contexto o decisivo aporte crítico. Meu propósito é estabelecer os quadrantes da sociologia do Brasil a partir de seus três grandes caminhos – liberalismos (juspositivismos), não liberalismos (não juspositivismos) e crítica –, forjando, com isso, uma didática e uma sistemática que permitam, também, o incremento de seu estudo e pesquisa. Além de partes originais, esta obra incorpora diretamente alguns capítulos publicados em meu Sociologia do direito, obra na qual desenvolvo, ainda, a reflexão sobre os fundamentos da sociologia geral e a sistematização de seus principais pensadores no mundo, e que serve de base teórica e referência a muitas das questões aqui tratadas.

Na dor histórica da exploração e das dominações, mas também na esperança do enfrentamento, que sirvam estas páginas às pesquisas e ao público leitor interessados no Brasil e inspirados pela luta em favor de sua transformação.

 São Paulo, de 7 de setembro de 2022, bicentenário da Independência, a 1º de janeiro de 2024.


Não perca o lançamento antecipado de Sociologia do Brasil hoje (10/04) às 14h, com Alysson Mascaro e Luciana Genro, mediação de Marcos Morcego:


Em Sociologia do Brasil, o filósofo do direito Alysson Leandro Mascaro apresenta uma sistematização do pensamento social brasileiro produzido ao longo da história. O autor esmiúça as principais linhas desse debate a partir de três diferentes vertentes, a liberal, a não liberal e a crítica.

Com referência a autores clássicos e mais recentes, Mascaro propõe uma leitura crítica marxista a respeito da sociedade brasileira e busca romper com suas típicas limitações liberais ou organicistas, inscrevendo nesse contexto o decisivo aporte crítico. O pensamento de autores como Darcy Ribeiro, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda e Guerreiro Ramos são objeto de análise na obra.

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Alysson Leandro Mascaro é jurista e filósofo do direito, doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP), além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Pela Boitempo, publicou Crítica do fascismo (2022), Crise e pandemia (2020), Crise e golpe (2018) e Estado e forma política (2013).

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